“Hospício é esse branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos: trêmulo, esvaziado de sangue – e sempre outro”, a frase de Maura Lopes Cançado parece descrever a mutilação do circuito de desejos e afetos das mulheres internadas em manicômios brasileiros no início do século XX. Se o coração bombeasse muito sangue, reativando o fluxo de desejo e vida, a instituição intervinha, e violentamente.
“Há quatro anos, separou-se do esposo, alegando incompatibilidade de gênios; os irmãos estranharam tal procedimento, mas a observanda não lhes deu maiores explicações, procurando, desde então, viver separada de todos da família. Vivendo de seu trabalho numa repartição pública, a paciente raramente visitava os parentes, mas esses, já de algum tempo, vêm notando que as suas ideias não se achavam perfeitas.” (Prontuário de M. de P. apud VACARO, 2011, p.55)
Os prontuários de mulheres internadas no Hospital Nacional de Alienados e no Sanatório Pinel mostram que muitos diagnósticos se apoiavam fragilmente em discursos de familiares ou em comportamentos então considerados desviantes dos estereótipos de gênero. Como o caso de M. do C., internada por ser por ser considerada “de gênio independente” e ter uma “inclinação amorosa que contrariava a vontade da família” (VACARO, 2011). Pode-se perfeitamente questionar as relações entre poder manicomial e outras formas de poder – como, por exemplo, o poder patriarcal. Se os mecanismos de poder trabalham de modo a esconder seu próprio funcionamento, analisar esses mecanismos e os meios através dos quais tornam sua própria existência invisível é fundamental para produzir técnicas de resistência.
Poder e normalização
“Gênio independente”, “não obedecia ao pai”, “separou-se do marido”, “escrevia livros”, “trabalhava muito”, “era preguiçosa”, “apaixonou-se por um rapaz”, “cantava o dia todo”, “desobedeceu ao patrão”, “reclamava do salário”, “inclinações políticas subversivas” essas condutas não podem ser consideradas patológicas per se e também não configuram infrações, no sentido legal do termo. No entanto, eram consideradas aberrações por escaparem às normas estabelecidas para as mulheres da época. A repetição tautológica desses elementos nos prontuários médicos de grandes manicômios brasileiros parecia querer afirmar que aquele comportamento era um traço desviante individual – e não o reflexo de uma mudança social. No início do século XX, o movimento feminista dava os primeiros passos, mulheres começavam a entrar nas universidades e na política.1 Essa insurgência feminina foi vista como uma ameaça à ordem social estabelecida e houve diferentes tentativas de repressão para controlar uma suposta “crise da família”. Um dos mecanismos de controle era o poder manicomial.
O deslocamento de atos, condutas e maneiras de ser para o campo psiquiátrico é uma técnica de normalização. Essas técnicas não são apenas fruto do encontro entre normalidade e gênero, mas de um poder presente em diversas esferas da sociedade e que pretende padronizar formas de existência e colonizar o saber médico de acordo com seus interesses. Segundo Foucault (2001), o poder de normalização pesa como uma violência contínua que alguns (sempre os mesmos) exercem sobre outros (que também são sempre os mesmos). Um poder cuja função essencial é proibir, impedir e isolar, reproduzindo e perpetuando relações de poder. Na análise dos prontuários, é possível perceber como a realidade era ainda mais brutal quando entravam em jogo diferentes formas de opressão (classe, raça, gênero, orientação sexual).
“Um tipo de poder que não está ligado ao desconhecimento, mas que, ao contrário, só pode funcionar graças à formação de um saber, que é para ele tanto um efeito quanto uma condição de exercício.” (FOUCAULT, 2001, p. 45)
M. de P. tinha 21 anos quando foi internada no Sanatório Pinel, em São Paulo. Segundo Juliana Vocaro, que pesquisou os prontuários das mulheres internadas no Pinel na década de 1930, “todos os elementos elencados como demonstração de sua doença foram fornecidos pelo seu irmão”.
“Para mulheres, os limites eram muito mais rígidos, e elas tinham que se encaixar no que era ser mulher, mãe e esposa. […] Nem todas as mulheres que viveram na primeira metade do século XX escolheram viver a vida nas formas prescritas. Na população feminina do Sanatório Pinel, podemos encontrar inúmeras histórias de mulheres que buscaram certa autonomia frente às pressões que a sociedade lhes impunha, mas também mulheres que, mesmo desempenhando uma função a elas delegada, sofreram crises relacionadas a esses papéis. Essas manifestações, aos olhos das “instituições reguladoras”, foram vistas como sinais de demência e desequilíbrio mental.” (VACARO, 2011, pp. 10-11)
M. foi submetida a tratamento de choque com injeção de Cardiazol, medicação que provocava convulsões tão intensas que chegavam a fraturar ossos – inclusive da coluna. É interessante perceber como e para quê as medicações são utilizadas. Antes disso: analisar os conceitos de cura e doença. M. tomou sete injeções de Cardiazol em dois meses de internação.
De quê M. foi curada? Qual era a sua doença afinal?
Leia o texto na íntegra no Blog da Boitempo
Clínica de Recuperação Grupo Casoto
ResponderExcluirwww.grupocasoto.com.br
A Clínica de Recuperação Grupo Casoto conta com diversas unidades para tratamentos da dependência química.
Publicação interessante!
ResponderExcluirSe a gente for parar para analisar existe uma noção machista de que as mulheres são mais desequilibradas. Antigamente acreditava-se que apenas as mulheres tinham histeria e o nome dessa condição vem de "útero" sendo que não existe qualquer relação entre ela e a presença ou não de um.
Felizmente estamos avançamos bastante, mas ainda está bem longe do ideal :O
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Sobre mim:
Jovem estudante entusiasta de Psicologia que sofre com Transtorno Afetivo Bipolar (TAB). No meu blog você vai encontrar desde artigos técnicos informativos de Psicologia, Psicanálise e Saúde Mental, a também reflexões, desenhos e poemas de minha autoria.
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